Enquanto trabalham na quebrada da soleira entoam um canto imbuído de dor e conformismo de uma gente que sabe que veio ao mundo num dia de pouca inspiração divina. Certa tarde, já bem cansada e desiludida de tudo, Adelaide avista no corte da cana Francisco que, como ela, é jovem, forte e viçoso e não consegue tirar os olhos desejosos de seu corpo moreno e bem feito. Vê nitidamente que é correspondida com o mesmo fervor e desejo e isso a ela é incomum.
As investidas no olhar já datam de algum tempo e Adelaide, como mulher casada e de respeito, trata de desviar qualquer flerte mesmo ciente de que o desejo arde e num lampejo de loucura pede para que uma amiga olhe a filha para se dirigir discretamente até o rapaz. Os dois marcam o encontro atrás da mercearia as oito em ponto, uma vez que o marido e a filha visitariam a sogra dela naquele dia. Como combinado Francisco a pegou no local e hora marcadas e a levou para um motel barato de estrada e Adelaide (que nunca soube o que é prazer nessa vida) refestelou-se nos braços do viril e envolvente homem.
Essa seria mais uma estória de infidelidade como tantas outras se a moça não resolvesse abandonar família, mas não para ficar com o amante e sim para "cair na estrada" e conhecer quantos homens fosse possível e onde fosse necessário. Foram muitas as boleias, matas e banheiros até que ela resolveu se empregar numa casa de moças e hoje, mais de vinte anos depois, é a proprietária do local que com letreiro néon sinaliza "Casa da Adelaide". É ali que ela se encontra sem nem pensar se usa ou é usada. Vez ou outra pensa na vida que deixou e até derrama umas lágrimas para depois passar uma boa camada de maquilagem em seu rosto já não tão belo e vestir seus vestidos extravagantes. Para ela a vida é assim mesmo e se os sonhos de menina não foram realizados a contento é outra estória...
Óbito
Não há música para surdos e nem cores para cegos
E tudo o que foi por ti projetado não cabe na tela de meu sonho
Ao anoitecer o céu negro trará estrelas sem destino algum
Nunca passe sem dizer ao menos adeus e nem faça da escuridão uma sina
Quem dera parar o tempo no instante daquele olhar
Poder sentir o sopro do vento e o aconchego do abraço
Hoje sei o quanto custa cozinhar os olhos em lágrimas
Buscar o pífio e incerto momento
O beijo já não adoça mais a alma e é bom saber que o desejo se esvai
Sua presença já não é vital e nem meus próprios sonhos são da forma que espero
Vivo com tal intensidade o presente que – quase sempre – me atraso para o futuro
(inspirado na composição “Hoje” de Moreno Veloso e nos muitos poemas da amiga Cecilia Egreja)
FESTA
Num outro tempo numa ilusão mais tola
Tudo é incerto e nada é pra já
O revólver do meu sonho atira pra onde eu mirar
Mas sem matar a ilusão de que amanhã é tudo luz e calor
DIÁLOGO IMPERTINENTE
(ou a razão interpela o sonho)
De onde vens?
Do irreal.
Você não é real! Como podes viver sem estar presente?
Porque não preciso da vida, sou maior.
E por que não se pronuncias? Por que ficas etéreo?
Porque sou soberano!
És soberano, mas não vives. E se não vive, por que ser?
Não vivo como matéria, mas vivo na paixão, nos anseios, na inquietação.
Eu sou palpável e tenho nuances, timbre e textura, sou profana e sagrada, sou baixa e sou alta, profunda e rasa, aguda e grave. Sou o que quero, quando e onde me dá na telha.
Você acha...
E por que ages com tamanha indiferença diante das coisas? Por que vives como se fosse incólume e indiferente?
Já disse que sou soberano. Enquanto precisas de matéria para existir e construir sua teia, eu só conto com o delírio, o silêncio, o sono, a loucura. Enquanto corres atrás do singular, eu já nasci plural.
Mas eu viro algo e você fica no pensamento. Sou concreto e você substância desconhecida.
Eu não viro porque sou mutação e conto com o acaso, enquanto você vai atrás da comprovação. Eu não tenho textura, sou apenas sensação, sedução e transito sem pedir licença. Você presta contas e eu não dou satisfação. Você vive de verbo e eu de silêncio.
Um comentário:
Belíssimoooooo amigo Lucas!
Tudo está perfeito e maravilhoso. A propósito, sonhar é uma das poucas coisas que ainda não se paga em moeda, o preço esta em ser um eterno sonhador!
Beijos poéticos e cheios de prosa.
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