terça-feira, junho 17, 2008

Quanto custa um sonho?

"Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda." Karl Gustav Jung

Dia de sol, beira de rio, moças lavando roupas com seus filhos brincando em volta. Entre todas elas destaca-se por beleza e formosura Adelaide, esposa do velho e rabugento Miltinho e mãe de Carolina. Adelaide é dessas que mesmo com vida castigante e sem muitas alegrias, mantém intactos o frescor da juventude e o viço de sua beleza morena com traços bem delineados e sensualidade brejeira, venusiana.


Enquanto trabalham na quebrada da soleira entoam um canto imbuído de dor e conformismo de uma gente que sabe que veio ao mundo num dia de pouca inspiração divina. Certa tarde, já bem cansada e desiludida de tudo, Adelaide avista no corte da cana Francisco que, como ela, é jovem, forte e viçoso e não consegue tirar os olhos desejosos de seu corpo moreno e bem feito. Vê nitidamente que é correspondida com o mesmo fervor e desejo e isso a ela é incomum.

As investidas no olhar já datam de algum tempo e Adelaide, como mulher casada e de respeito, trata de desviar qualquer flerte mesmo ciente de que o desejo arde e num lampejo de loucura pede para que uma amiga olhe a filha para se dirigir discretamente até o rapaz. Os dois marcam o encontro atrás da mercearia as oito em ponto, uma vez que o marido e a filha visitariam a sogra dela naquele dia. Como combinado Francisco a pegou no local e hora marcadas e a levou para um motel barato de estrada e Adelaide (que nunca soube o que é prazer nessa vida) refestelou-se nos braços do viril e envolvente homem.

Essa seria mais uma estória de infidelidade como tantas outras se a moça não resolvesse abandonar família, mas não para ficar com o amante e sim para "cair na estrada" e conhecer quantos homens fosse possível e onde fosse necessário. Foram muitas as boleias, matas e banheiros até que ela resolveu se empregar numa casa de moças e hoje, mais de vinte anos depois, é a proprietária do local que com letreiro néon sinaliza "Casa da Adelaide". É ali que ela se encontra sem nem pensar se usa ou é usada. Vez ou outra pensa na vida que deixou e até derrama umas lágrimas para depois passar uma boa camada de maquilagem em seu rosto já não tão belo e vestir seus vestidos extravagantes. Para ela a vida é assim mesmo e se os sonhos de menina não foram realizados a contento é outra estória...

Óbito

Não há música para surdos e nem cores para cegos

E tudo o que foi por ti projetado não cabe na tela de meu sonho

Ao anoitecer o céu negro trará estrelas sem destino algum

Nunca passe sem dizer ao menos adeus e nem faça da escuridão uma sina

Quem dera parar o tempo no instante daquele olhar

Poder sentir o sopro do vento e o aconchego do abraço

Hoje sei o quanto custa cozinhar os olhos em lágrimas

Buscar o pífio e incerto momento

O beijo já não adoça mais a alma e é bom saber que o desejo se esvai

Sua presença já não é vital e nem meus próprios sonhos são da forma que espero

Vivo com tal intensidade o presente que – quase sempre – me atraso para o futuro

(inspirado na composição “Hoje” de Moreno Veloso e nos muitos poemas da amiga Cecilia Egreja)

FESTA

Num outro tempo numa ilusão mais tola

Tudo é incerto e nada é pra já

O revólver do meu sonho atira pra onde eu mirar

Mas sem matar a ilusão de que amanhã é tudo luz e calor

DIÁLOGO IMPERTINENTE

(ou a razão interpela o sonho)

De onde vens?

Do irreal.

Você não é real! Como podes viver sem estar presente?

Porque não preciso da vida, sou maior.

E por que não se pronuncias? Por que ficas etéreo?

Porque sou soberano!

És soberano, mas não vives. E se não vive, por que ser?

Não vivo como matéria, mas vivo na paixão, nos anseios, na inquietação.

Eu sou palpável e tenho nuances, timbre e textura, sou profana e sagrada, sou baixa e sou alta, profunda e rasa, aguda e grave. Sou o que quero, quando e onde me dá na telha.

Você acha...

E por que ages com tamanha indiferença diante das coisas? Por que vives como se fosse incólume e indiferente?

Já disse que sou soberano. Enquanto precisas de matéria para existir e construir sua teia, eu só conto com o delírio, o silêncio, o sono, a loucura. Enquanto corres atrás do singular, eu já nasci plural.

Mas eu viro algo e você fica no pensamento. Sou concreto e você substância desconhecida.

Eu não viro porque sou mutação e conto com o acaso, enquanto você vai atrás da comprovação. Eu não tenho textura, sou apenas sensação, sedução e transito sem pedir licença. Você presta contas e eu não dou satisfação. Você vive de verbo e eu de silêncio.


Um comentário:

Blog da Joana Paro disse...

Belíssimoooooo amigo Lucas!
Tudo está perfeito e maravilhoso. A propósito, sonhar é uma das poucas coisas que ainda não se paga em moeda, o preço esta em ser um eterno sonhador!
Beijos poéticos e cheios de prosa.