quarta-feira, outubro 03, 2012

Doce Espera





Certa vez a Anna Sílvia, que era uma excelente professora de redação no colegial, passou a letra de Teresinha do Chico Buarque para que fizéssemos uma releitura e eu me levantei, fui até ela e perguntei até um pouco pedante se podia fazer algo diferente, carregado e com muitas palavras de baixo calão. Ela, inteligente que só, respondeu que eu tinha total liberdade e que a correção se ateria apenas à construção textual (ortografia, gramática e semântica), dando um exemplo ótimo: "Eu não ligo que você escreva caralho desde que não seja caráleo, entende?"

O fato é que eu fiz e há pouco tempo reencontrei o rascunho. Até hoje não sei bem porque, mas eu sempre joguei fora a versão escrita em tinta no final do ano e guardo até hoje os rascunhos feitos a lápis. Aliás, eu gosto muito de jogar fora, queimar, destruir completamente e guardo uma ou outra coisa aqui no blog ou mesmo em e-mail. Acho destruir uma coisa positiva, exorcizante, higiênica mesmo! Acontece que - ao reler - me deu uma vontade louca de rever essa mulher tão controversa, romântica e maluca criada pelo compositor e simplesmente não consigo postar o texto de mil novecentos e noventa e nove sem retoques e isso porque na primeira versão Terezinha terminava louca de ciúme, desfigurando a facadas uma oponente que hoje nem me parece real. Hoje a vejo assim:

Tive três grandes amores nessa vida. Na verdade, não! Eu não tive muitos amores porque o grande amor é sempre o último ou o do momento. Logo, tenho apenas um amor e ele é o homem definitivo, único em minha vida. É dele que eu sou, para ele que eu vivo e com ele que durmo todas as noites até hoje. Vocês podem não acreditar, mas eu tive, ainda essa noite, uma madrugada de corar prostitutas senis e experimentadas. O melhor é que está tudo em detalhes na minha cabeça que é a morada de toda luxúria que possa haver.

Ele chegou quando não havia mais olhos abertos e refestelou-se, fazendo de mim o ser humano mais saciado, vulgar e sujo de que se tem notícia. Foi tanto abuso e gozo que mesmo ao me banhar para falar com os senhores ainda posso sentir aquele odor de mulher metida com força, humilhada, castigada mesmo! Ah! Se eu soubesse que bastava acabar com tudo para que ele me tratasse como tratava as putas, teria cometido tudo isso antes. Eu nunca pensei que a marginalidade, a privação, a loucura poderia ser tão libertadora! Em pensar que passei tanto tempo limpando a casa, parindo, cozinhando, cuidando de tudo com esmero para ser vista quando, na verdade, tudo o que eu queria era apenas ter uma boca vermelha, um corpo usado, um vestido brilhante, um cabelo sedoso e longo. Eu nunca gostei da vida como era, sabe? Eu estava acostumada, mas odiava aquilo tudo! Não gosto nem dos filhos! Aliás, posso fazer uma pergunta? Eu deixei tudo limpinho, né?

Bem, vocês querem saber como tudo aconteceu, não é? Posso dizer, Doutor? Eu posso?

Eu estava em casa, vendo novela com as crianças. Nossa! Como era difícil lidar com aquelas pestes! Vez ou outra até me pegava em momentos de ternura, mas logo algum chorava e implorava atenção. A atenção que eu só tinha para ele, para o meu homem e não para aquelas crianças que aconteceram em nosso lar sem pedir licença. O fato é que naquela noite ele não veio no tempo devido e eu enlouquecida de raiva pensei que algo devia ser feito e fui até a cozinha, fiz uma mamadeira para cada um com um pouco de calmante. Não tardou muito e os três dormiram rápido! Eu adoro a imagem deles dormindo porque parecem anjinhos tão cândidos e silenciados! As horas foram passando e nada dele voltar. Aquilo foi me dando uma privação mesmo e resolvi que de nada adiantava as crianças dormirem porque eu não seria mulher aquela noite. Então fui até a garagem, peguei uma mangueira de piscina e coloquei uma ponta no escapamento do carro e a outra dentro do veículo fechado. Levei os três já adormecidos para lá, os coloquei no banco de trás um a um. Ah! Como estavam lindos e bem cuidados! Eu sempre fui uma mãe zelosa! Fiquei olhando e nem sofrimento teve. Como ficaram bonitinhos, corados! Assim que percebi que eles tinham dormido para sempre ao lado do Menino Jesus e de Nossa Senhora, os levei para o quarto novamente e os coloquei em suas caminhas. Não demorou muito e logo o meu homem chegou. Eu já estava pronta com minha camisola de renda preta, banho tomado e perfumada. É engraçado tudo isso! Quando adolescente eu me imaginava casada, com filhos, esperando meu marido e na minha imaginação essa cena era tão bela, uma espera doce, afetuosa. A vida é mesmo estranha e tão diferente das cenas que imaginamos no café da manhã.

Ele: Demorei muito? Tivemos reunião até tarde hoje.
Teresinha: Você nunca está atrasado! Eu esperaria para sempre se preciso fosse.
Ele (roçando os lábios em seu pescoço): Como é bom te amar, sentir seu cheiro!
Teresinha (falando em seu ouvido): Psiuuu! Não fale! Faça silêncio! As crianças podem acordar. Apenas me ame em silêncio como eu sei que fazes na rua...
Ele (irônico): Você gosta de pensar que tenho outras! Só pode...

Ali Teresinha e o marido se amaram pela última vez, pois assim que ele adormeceu ela foi até a dispensa e pegou a linha de pesca dele - material com o qual o matou, dilacerando o seu pescoço.

Teresinha (olhando para o marido agonizante): Pensa que eu não sei o que fazes nessas pescarias, maldito?!

O marido tentou em vão se defender, mas com os sentidos comprometidos por clorofórmio que ela o fez ingerir de supetão, nada seria de grande valia. Morreu, segurando as mãos de sua, até então, amantíssima esposa.

Teresinha se levantou, arrumou tudo impecavelmente, escreveu a carta que acaba de ser lida por vocês e só então matou-se do mesmo jeito que mataste as crianças.

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